Imagem ilustrativa - O Tempo
Ontem
o gritei enquanto eu voltava da mercearia, onde fora comprar um real de pão e
um quilo de açúcar Guarani – aquele intermediário entre o União e o Caravelas.
Ele
passara por mim há pouco com sua bicicleta de carga e suas roupas indefectivelmente
sujas, como de estivador. Eu queria dar-lhe alguns remédios que comprara para
um dos gatos da casa, e que agora ficaram sem uso, e poderiam estar fazendo
falta para alguém.
Ele
é um desses alguéns e conhecedor de muitos outros como ele – um protetor de
animais, um zelador da criação numa luta dantesca contra tantos gigantes – da
coisificação dos animais ao discurso dos politicamente corretos de sofá & plantão
– “Tanta gente precisando de ajuda, e você salvando cães?”.
Ele,
que tem emprego fixo, após o expediente engata no segundo batente – coletor de
reciclagens, cuja boa parte do lucro, eu o sei, é destinado a alimentar e
cuidar de animais sob a guarda dele e de outros. Lida com lixo – o lixo humano
que não entende a nobreza de suas ações, e o lixo produzido com tão
desembestada fartura pelo bicho homem, a quem até nisso ele ajuda, recambiando
os materiais para que a Terra, brevemente poupada, tenha um quilo a mais de
fôlego.
É
um camarada excepcionalmente fora da curva – ao menos da curva que nossos
cansados e míopes olhos suburbanos alcançam. Arredio a festas e maiores
confraternizações ou infernizações sociais, diz não pertencer “a nenhum
sistema”; acredita na força superior que a tudo gerou e sustém.
Construiu
sua grande casa praticamente sozinho, e nela vive sem aporrinhar ninguém, em
nenhum dos trezentos e tantos dias do ano. Como acontece aos demais de sua
espécie, a incompreensão leva os demais a cognominá-lo de “maluco”. Bem, até eu
já carreguei essa bandeira nas costas. Em certos momentos ela vira até menção
honrosa, escudo. Mas voltemos ao nosso homem. Ele se incomoda com carros
largados em sua porta, ou a venda de drogas perto a seu portão? Sim. E você,
não? Tem um pouco menos de medo que o normal dos homens, mas nada que o faça um
Superman. A ninguém aborrece, a todos cumprimenta, e vive como pode sua
inadequação.
Enquanto
conversávamos em meu portão, vizinho ao dele, um casal de também vizinhos
passou pela rua e lhe agradeceu – pela ajuda prestada, vim a saber, com um
cachorrinho da tal família que havia ferido internamente o ouvido. Ele, com
quem as pessoas têm pouca paciência de conversar – o abençoado insiste em não
se enquadrar nos padrões, e olha que cada um de nós tem centenas de padrões
pré-programados para engarrafar os outros – disse que fazia aquilo por missão,
por senso de missão.
O
homem, já senhor de seus sessenta e poucos anos, mas com cara de 45, firme
calibre, disse não ser digno de agradecimentos. Pois é apenas um ser humano
cumprindo seus propósitos de vida. E que o que fazia nada era, e que já fora,
ele também, muito ajudado por muitas pessoas. “Dente da engrenagem, elo da
corrente de Gaia”, pensei.
Sendo
aguardado pela patroa, tive que me despedir. Enquanto trancava o portão, me
surpreendi silenciosamente feliz por um homem de exceção como aquele,
misantropo que tão bem conhece a miséria humana, mas a peita e contradiz, ter
um tão grande e incompreensível carinho por mim. Oxalá eu, outro gauche
na vida, como ele, como Drummond, esteja no caminho certo, seja um dos
humílimos remadores contra a corrente?
Sérgio
é o nome dele. Um dos muitos gonçalenses anônimos que sustentam essa terra de
pé – reserva moral, reserva de amor, reserva de proatividade pró-vida – reserva
sem reservas. Um dos quais o mundo não é digno, como diz a Bíblia (Hb 11.38)
acerca de santos.
Sammis Reachers
Artigo publicado originalmente no Jornal Daki
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