segunda-feira, 27 de julho de 2020

O meu vizinho, anônimo herói pró-vida


Imagem ilustrativa - O Tempo

Ontem o gritei enquanto eu voltava da mercearia, onde fora comprar um real de pão e um quilo de açúcar Guarani – aquele intermediário entre o União e o Caravelas.
Ele passara por mim há pouco com sua bicicleta de carga e suas roupas indefectivelmente sujas, como de estivador. Eu queria dar-lhe alguns remédios que comprara para um dos gatos da casa, e que agora ficaram sem uso, e poderiam estar fazendo falta para alguém.
Ele é um desses alguéns e conhecedor de muitos outros como ele – um protetor de animais, um zelador da criação numa luta dantesca contra tantos gigantes – da coisificação dos animais ao discurso dos politicamente corretos de sofá & plantão – “Tanta gente precisando de ajuda, e você salvando cães?”.
Ele, que tem emprego fixo, após o expediente engata no segundo batente – coletor de reciclagens, cuja boa parte do lucro, eu o sei, é destinado a alimentar e cuidar de animais sob a guarda dele e de outros. Lida com lixo – o lixo humano que não entende a nobreza de suas ações, e o lixo produzido com tão desembestada fartura pelo bicho homem, a quem até nisso ele ajuda, recambiando os materiais para que a Terra, brevemente poupada, tenha um quilo a mais de fôlego.
É um camarada excepcionalmente fora da curva – ao menos da curva que nossos cansados e míopes olhos suburbanos alcançam. Arredio a festas e maiores confraternizações ou infernizações sociais, diz não pertencer “a nenhum sistema”; acredita na força superior que a tudo gerou e sustém.
Construiu sua grande casa praticamente sozinho, e nela vive sem aporrinhar ninguém, em nenhum dos trezentos e tantos dias do ano. Como acontece aos demais de sua espécie, a incompreensão leva os demais a cognominá-lo de “maluco”. Bem, até eu já carreguei essa bandeira nas costas. Em certos momentos ela vira até menção honrosa, escudo. Mas voltemos ao nosso homem. Ele se incomoda com carros largados em sua porta, ou a venda de drogas perto a seu portão? Sim. E você, não? Tem um pouco menos de medo que o normal dos homens, mas nada que o faça um Superman. A ninguém aborrece, a todos cumprimenta, e vive como pode sua inadequação.
Enquanto conversávamos em meu portão, vizinho ao dele, um casal de também vizinhos passou pela rua e lhe agradeceu – pela ajuda prestada, vim a saber, com um cachorrinho da tal família que havia ferido internamente o ouvido. Ele, com quem as pessoas têm pouca paciência de conversar – o abençoado insiste em não se enquadrar nos padrões, e olha que cada um de nós tem centenas de padrões pré-programados para engarrafar os outros – disse que fazia aquilo por missão, por senso de missão.
O homem, já senhor de seus sessenta e poucos anos, mas com cara de 45, firme calibre, disse não ser digno de agradecimentos. Pois é apenas um ser humano cumprindo seus propósitos de vida. E que o que fazia nada era, e que já fora, ele também, muito ajudado por muitas pessoas. “Dente da engrenagem, elo da corrente de Gaia”, pensei.
Sendo aguardado pela patroa, tive que me despedir. Enquanto trancava o portão, me surpreendi silenciosamente feliz por um homem de exceção como aquele, misantropo que tão bem conhece a miséria humana, mas a peita e contradiz, ter um tão grande e incompreensível carinho por mim. Oxalá eu, outro gauche na vida, como ele, como Drummond, esteja no caminho certo, seja um dos humílimos remadores contra a corrente?
Sérgio é o nome dele. Um dos muitos gonçalenses anônimos que sustentam essa terra de pé – reserva moral, reserva de amor, reserva de proatividade pró-vida – reserva sem reservas. Um dos quais o mundo não é digno, como diz a Bíblia (Hb 11.38) acerca de santos.

Sammis Reachers
Artigo publicado originalmente no Jornal Daki

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